A presença negra na arte brasileira é datada de séculos passados. Desde os pintores e arquitetos que construíram a iconografia religiosa do país, passando pelos pré-modernistas, modernistas e, finalmente, contemporâneos, os caminhos percorridos pela arte afro-brasileira são vastos em pontos de contato e distanciamentos. De fato, essa abundante produção esteve presente nos principais momentos – e movimentos – que formaram e cunharam a própria história do Brasil. Por vezes não referenciada, a arte produzida por pessoas negras é sinônimo de pluralidade.
Dos livros, catálogos, exposições e pesquisas que abordaram essa presença, despontam, nos últimos anos, ações que reivindicam um lugar em perspectiva com as mudanças do pensamento e práticas dissonantes. A arte produzida por pessoas negras delineia novas ideias, atreladas às constantes inquietações por um apurado senso estético e político. Nessas produções, destaca-se o rompimento de uma concepção de unicidade, pelo interesse em desconstruir fórmulas, reinventar espaços e assumir protagonismos.
Idealizada a partir do Projeto Afro, plataforma de mapeamento de artistas negros/as/es, a exposição Encruzilhadas da arte afro-brasileira apresenta 62 artistas de todas as regiões do país, entre os mais de trezentos mapeados. Buscando examinar e propor um outro referencial para uma história antes contada na ótica hegemônica branca, a exposição elenca nomes fundamentais para se (re)pensar os emaranhados de um sistema que é desigual. Arthur Timótheo da Costa, Rubem Valentim, Maria Auxiliadora, Mestre Didi e Lita Cerqueira ocupam o prédio desta instituição, cada qual em um dos cinco eixos temáticos: Tornar-se; Linguagens; Cosmovisão; Orum; e Cotidianos, respectivamente.
Em diálogo com artistas contemporâneos, essas relações se dão por diferentes tempos, temáticas, técnicas, formas e cores empregadas, aproximando artistas de períodos e regiões distintas, sem esgotar a abrangência, a complexidade e as distintas pesquisas empregadas pela produção artística e intelectual de pessoas negras. As vias possíveis de confluências acontecem, desse modo, na coletividade, mas sem perder a subjetividade dos trabalhos aqui apresentados.
Se, por um lado, esses cruzamentos abrem os caminhos, por outro, a arte afro-brasileira é a encruzilhada que manifesta os rumos das narrativas que ressignificam territórios e histórias.
Deri Andrade
Curador
LISTA DE ARTISTAS
Abdias Nascimento
Adriano Machado
Ana Lira
André Vargas
Andréa Hygino
Arthur Timótheo da Costa
Augusto Leal (itinerância SP)
Castiel Vitorino Brasileiro
Davi Cavalcante
Éder Oliveira
Elian Almeida
Elidayana Alexandrino
Emanoel Araújo
Flávio Cerqueira
Gê Viana
Gleyson Borges, vulgo A coisa ficou preta
Guilherme Almeida
Guilhermina Augusti
Gustavo Nazareno
Hariel Revignet
Helô Sanvoy
Josi
Kika Carvalho
Lia Letícia
Lídia Lisboa
Lita Cerqueira
Luna Bastos
Manauara Clandestina
Marcel Diogo
Marcela Bonfim
Marcus Deusdedit
Maria Auxiliadora
Massuelen Cristina (itinerância BH e RJ)
Matheus Ribs
Mauricio Igor
Mestre Didi
Mika
Milena Ferreira
Moises Patrício
Mônica Ventura
Mulambö
Natan Dias
Nay Jinknss
Panmela Castro
Paty Wolff
Pedra Silva
Pedro Neves
Priscila Rezende
Rafa Bqueer
Renata Felinto
Ros4 Luz
Rubem Valentim
Sidney Amaral
Silvana Mendes
Tercília dos Santos
Thiago Costa
Tiago Sant’Ana
Ueliton Santana
Victor Fidelis
Vitú de Souza
Washington Silvera
Will
Yhuri Cruz
Galeria
Eixos
Tornar-se
Produzindo em um período em que a prática artística estava atrelada às escolas da elite de belas-artes da virada do século XIX para o XX, Arthur Timótheo da Costa (Rio de Janeiro, RJ, 1882-1922) estabelece, em seu trabalho, uma intrínseca relação com o ambiente do ateliê de artista. Não por acaso, seus autorretratos buscam reafirmar esse fazer enquanto práxis fundantes de sua produção. Entre paisagens e figuras, Timótheo da Costa recebe elogios da crítica especializada pelo primor técnico, produzindo em um período marcante da história da arte no Brasil, com o movimento modernista paulistano batendo à porta.
Neste primeiro eixo da exposição, artistas de diversos períodos reafirmam-se em autorretratos, muitos vinculados à prática de ateliê, provocando debates sobre a importância desse espaço para as pesquisas e os caminhos que a produção negra percorreu e pelos quais se estabeleceu ao longo dos séculos. Longe dos paradigmas hegemônicos que ditaram regras e instituíram critérios para apontar quem é ou não artista, o que é ou não arte, as obras aqui apresentadas se afirmam como outros caminhos possíveis para a arte brasileira.
Linguagens
De que forma se dão os movimentos artísticos no Brasil? De que maneira as referências hegemônicas criam as categorias que ditam regras? Rubem Valentim (Salvador, BA, 1922 – São Paulo, SP, 1991) esteve atrelado aos movimentos e às linguagens artísticas por meio de uma produção singular. A partir da abstração geométrica, do construtivismo e do concretismo, seu trabalho foi lido nessas chaves que o categorizaram. No entanto, a produção do artista acontece, justamente, nos encontros entre as ancestralidades africanas, confrontando qualquer categoria que o tentou limitar.
Neste eixo da exposição, o fazer artístico acontece nas mais diversas materialidades. Com base nas pesquisas em ateliês, artistas de momentos distintos tensionam tais regras. À medida que a construção de uma identidade nacional esteve atrelada ao progresso do país, artistas reconstroem a ideia de linguagem, em novos conceitos e paradigmas para se pensar em um outro referencial de arte produzida no Brasil.
Cosmovisão
Nos temas que transitam entre o meio rural e o urbano, Maria Auxiliadora (Campo Belo, MG, 1935 – São Paulo, SP, 1974) criou uma produção pictórica complexa em suas técnicas e desdobramentos poéticos. A artista detém uma prática que buscou discutir questões desde as afrorreligiosidades, passando pelas festas populares, o labor no campo e as relações íntimas consigo mesma, no âmbito familiar em que esteve inserida.
Em obras que atravessam a realidade brasileira e suas problemáticas, como falta de acessos básicos para se viver em um país desigual, este eixo da exposição lança luz sobre essas provocações. A obra de Auxiliadora traz, assim, uma assinatura que a estabeleceu como uma das artistas essenciais para se debater a produção pictórica e artística no país. Em contato com artistas que amplificam os temas nos quais ela esteve interessada em sua curta vida – mas com uma vasta produção –, os discursos ensejam visões de futuro, atualizando nosso olhar para temas caros a nossa sociedade.
Orum
Em iorubá, Orum se estabelece como o mundo espiritual. No trânsito entre o céu e a terra, a obra de Mestre Didi (Salvador, BA, 1917-2013), ou Deoscóredes Maximiliano dos Santos, repousa na presença dessas simbologias, mas não se encerra aí. Artista, intelectual, educador, tradutor e sacerdote, Mestre Didi teve uma trajetória marcada pela intersecção das diferentes frentes em que esteve envolvido. No campo artístico, sua obra é o encontro entre temas, envolta nos mistérios dos cultos afrorreligiosos. Desse modo, a materialidade de seu trabalho se concentra no uso de elementos naturais, em combinações em que a forma se expressa no conteúdo.
Nesse contexto, as obras apresentadas neste eixo da exposição buscam referências nas relações tecidas entre Brasil e África, dos fluxos entre esses territórios conectados pelo Atlântico Negro e das cosmogonias das religiões de matriz africana presentes no país. Entre Orum (céu) e Aiê (terra), observamos a força da ancestralidade do passado ao presente. Na busca por outros cosmos, esses territórios se conectam pela expressão da sabedoria, do poder dos orixás e das águas que banham esses mundos.
Cotidianos
Entre as narrativas às quais artistas negros se dedicaram ao longo de suas carreiras, os temas dos cotidianos estiveram presentes em produções que atravessaram épocas. Lita Cerqueira (Salvador, BA, 1952), fotógrafa e uma das expoentes do fotojornalismo no Brasil, desenvolve um trabalho de mais de quatro décadas. Entre registros de cidades, principalmente da capital baiana, dos cotidianos, fotografia cênica, registros de músicos de sua época, Cerqueira cria um vasto material que perpassa registros de pessoas negras, em sua maioria, sob o olhar da artista.
Por séculos, o artista branco retratou o negro, principalmente no movimento modernista no Brasil, ao passo que o artista negro reivindica esse lugar em obras que vão desde a pintura até a fotografia. Neste eixo da exposição, apresentamos esse olhar, com ênfase em trabalhos que tensionam essas relações e propõem encruzilhadas de afeto e representatividade.
English text
Crossroads of Afro-Brazilian Art
The Black presence in Brazilian art extends across centuries. From the painters and architects who built the county’s iconography to the eras of premodern, modern, and contemporary art, Afro-Brazilian art has journeyed through extensive interactions and divergences. This prolific contribution has been present at the pivotal moments – and movements – that have shaped Brazil’s history. Often unacknowledged, the art produced by Black people is synonymous with plurality.
In recent years, books, catalogs, exhibitions, and research focused on this artistic presence have given rise to new initiatives aimed at staking out a place in keeping with the evolving thoughts and dissonant practices. The artwork by Black artists introduces innovative concepts, driven by a continuous quest for refined aesthetics and political awareness. These works evince a notable shift in conventional ideas, marked by a drive to deconstruct established norms, reinvent spaces, and take center stage.
Conceived as an outcome from the Projeto Afro [Afro Project], a platform dedicated to cataloging Black artists, the exhibition Encruzilhadas da arte afro-brasileira [Crossroads of Afro-Brazilian Art] presents 61 artists from across Brazil, selected from among the project’s mapping of over 300. This exhibition aims to reinterpret a history traditionally viewed through a hegemonic white lens, presenting works by key figures who allow us to rethink the tangles of an unequal system. Artworks by Arthur Timótheo da Costa, Rubem Valentim, Maria Auxiliadora, Master Didi, and Lita Cerqueira are shown in the institution’s building, each representing one of five thematic axes: Becoming; Languages; Worldview; Orun; and Everyday Life.
Engaging in dialogues with contemporary artists, these relationships span various eras, themes, techniques, forms, and hues, connecting artists from different regions and times, without, however, exhausting the scope, complexity and diversity of artistic and intellectual investigations carried out by Black people in Brazil. Although collective confluences emerge, the individual subjective essence of each artwork featured in the show is maintained.
While on the one hand these intersections open paths, on the other, Afro-Brazilian art is the crossroads that manifests the directions of narratives that reinterpret territories and histories.
Becoming
Produced an era when artistic practice was deeply rooted in the elitist fine arts schools of the turn of the 19th to the 20th century, the work by Arthur Timótheo da Costa (Rio de Janeiro, RJ, 1882 – 1922) is intrinsically linked with the environment of the artist’s studio. Not by chance, his self-portraits underscore studio practice as a foundational aspect of his production. Amidst landscapes and figures, Timóteo da Costa garnered acclaim from art critics for his exceptional technique, during a transitional moment in Brazilian art history, just as the São Paulo modernist movement was knocking at the door.
This first axis of the exhibition features artists from various periods who express themselves in self-portraits, many reflecting their studio practice. These works give rise to debates about the role of these creative spaces in artistic research and the evolution of Black artists over the centuries. Far from the hegemonic paradigms that once defined who was an artist, or not, the pieces shown here are affirmed as possible paths in Afro-Brazilian art.
Languages
How do artistic movements evolve in Brazil, and how do hegemonic references create the categories that dictate the rules? Rubem Valentim (Salvador, BA, 1922 – São Paulo, SP, 1991) was linked to these movements, yet distinguished by his unique artistic language. Based on geometric abstraction, constructivism, and concretism, his work was often interpreted within these frameworks that characterized it. But Valentim’s true essence lay in the integration of African ancestral influences, confronting any category that sought to limit his art.
In this axis of the exhibition we see how artists from different times, in a wide range of media have likewise challenged these rules. As Brazil’s national identity evolved alongside its progress, these artists reimagined the concept of “language” in art, introducing new ideas and paradigms, thereby introducing new references for Brazilian art.
Worldview
Maria Auxiliadora (Campo Belo, MG, 1935 – São Paulo, SP, 1974) transited between rural and urban themes, creating a pictorial oeuvre characterized by complex techniques and poetic developments. Her work dealt with topics ranging from Afro-religiosity and folk festivals to agricultural labor and even her intimate relationships with herself, in the context of her family.
Featuring artworks that reflect the realities and challenges of life in Brazil, such as the lack of access to basic needs in an inequitable country, this axis of the exhibition sheds light on these issues. Auxiliadora’s distinct style and themes established her as a key figure in the discourse concerning Brazil’s pictorial and artistic production. In her short life she created an extensive body of work that was resonated in the works of artists she had contact with, offering forward-looking perspectives and updating our outlook on issues central to our society.
Orun
In Yoruba culture, Orun signifies the spiritual realm. The works of Master Didi (Salvador, BA, 1917–2013), also known as Deoscoredes Maximiliano dos Santos, reflect and convey these symbologies, but range beyond this. An artist, intellectual, educator, translator, and priest, Didi wove together these diverse fields in which he was active. His art is a confluence of themes, built around the mysteries of Afro-religious cults. The materiality of his work is therefore concentrated in the use of natural elements, in combinations in which the form is expressed in the content.
In this context, the works presented in this axis of the exhibition seek references based on the relationships between Brazil and Africa, on the flows between these territories connected by the Black Atlantic, and on the cosmogonies of African-derived religions in Brazil. Between Orun (heaven) and Aiê (earth), we witness the enduring power of ancestry, stretching from the past into the present. In the search for other cosmoses, these territories are linked by the expression of wisdom, as well as by the power of the orishas and the waters that bathe these worlds.
Everyday Life
The exploration of daily life has been a recurring theme in the works of Black artists, throughout various periods. Lita Cerqueira (Salvador, BA, 1952), a renowned photographer and a leading figure in Brazilian photojournalism, has developed an extensive portfolio over the course of four decades. Her work captures a range of subjects, from urban life in Bahia’s capital to theater stage photography and portraits of contemporary musicians, focusing on the Black community primarily through her unique outlook.
For centuries, Black individuals were generally depicted by white artists, particularly during Brazil’s modernist movement. Currently, however, Black artists are reclaiming this narrative, through their art ranging from painting to photography. This axis of the exhibition focuses on this perspective, featuring works that challenge these relationships, proposing crossroads of affection and representativity.
Serviço
CCBB Rio de Janeiro
16 de novembro de 2024 a 17 de fevereiro de 2025
2º andar e térreo
Entrada gratuita.
Retire seu ingresso na bilheteria ou pelo site
Classificação Livre
Rua Primeiro de Março, 66 – Centro – Rio de Janeiro, RJ
(21) 3808-2020 (dias úteis, 9h às 18h) e ccbbrio@bb.com.br
Quarta a segunda, 9h às 20h. Terças fechado.